logo_viva_agreste

Conheça Curiquinha dos Negros, o Quilombo da Poesia

De Julho pra cá, a gente já visitou várias vezes Curiquinha dos Negros, uma comunidade quilombola localizada no município de Brejão, Agreste Meridional.

Com o retorno do Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), o Viva Agreste juntou a equipe e foi passar alguns dias na Cidade das Flores, acompanhando de perto o retorno do maior festival de cultura do Brasil.

Na busca por contatos do Agreste para produzir reportagens especiais, o poeta e educador César Monteiro foi apontado pelo cantor e compositor Adalberto Tavares como a pessoa certa para nos apresentar o famoso “Quilombo da Poesia”.

São 23 km de paisagens verdes que separam Garanhuns de Brejão. Com papel, caneta e câmera na mão, a gente seguiu viagem para registrar essa história.

Com a ajuda do Coletivo Poétnico, através de César, Anara, Cris e Bia, a gente apresenta a vocês o Quilombo Curiquinha dos Negros.

Coletivo Poétnico é formado por meninas quilombolas e o poeta César Monteiro
O Quilombo da Poesia recebe esse nome pelo trabalho de meninas como Anara, Bianca e Cris, e do poeta César Monteiro (Foto: Arnaldo Félix)

Quilombo Curiquinha dos Negros, Brejão, PE

Curiquinha dos Negros é uma das 52 comunidades quilombolas do Agreste, número esse que faz a região concentrar a maior quantidade de comunidades de Pernambuco.

O território fica localizado em Brejão, município com aproximadamente 9 mil habitantes. Fincada no Agreste Meridional, Curiquinha também é formada pelas comunidades de Sambaíba, Lagoa do Arroz, Limeira e uma parte de Genipapo.

Assim como muitos quilombos, Curiquinha dos Negros surgiu após a destruição do Quilombo dos Palmares. Atualmente, estima-se que 230 famílias vivam no território, tendo como principal fonte de renda a agricultura e agropecuária.

Apesar de ter sido certificada apenas em 2005, a história da comunidade começa séculos antes, precisamente em 1850.

Entendendo a importância de fazer um levantamento e registro histórico da comunidade, o morador César Monteiro começa a pesquisar entre os mais velhos a história do quilombo.

A pesquisa rendeu a publicação de um livro de poesias chamado “Poétnico – Um poema para Preta”.

“Meus antepassados começaram a dizer que eu venho de uma negra, que a história dos Faustos aqui vem de uma negra. Nessa pesquisa, a história dessa negra é a mesma história de como surge Curiquinha dos Negros. Então, Poétnico é esse livro onde eu encontro minha Tataravó, que é Preta”, explica o autor.

No incío da obra, César narra a história de amor e libertação de seus Tataravós, Preta e Joaquin Fausto, português viúvo que comprou as terras onde ela trabalhava.

Os dois vivem uma história de amor e através desse sentimento, os negros escravizados foram libertos na região.

Ao longo do livro, é possível saber mais sobre a história dos Faustos. Além de conhecer personagens singulares da comunidade, como Quitéria Parteira.

Responsável pelos partos na comunidade, inclusive o de César, Quitéria Parteira viveu 111 anos. Ainda em vida ganhou da Comunidade um Festival com o seu nome.

Além de Quitéria, outros personagens foram homenageados na obra. Mas, mais do que registrar a história local, “Poétnico – Um poema para Preta” iniciou também uma revolução cultural comandada pelas crianças e adolescentes da comunidade.

Ficou querendo ler a obra? Baixe e leia o livro completo aqui:

Poétnico-Um Poema para Preta – PDF

Por que o Quilombo da Poesia?

Quando o cantor agrestino Adalberto Tavares apresentou Curiquinha dos Negros, ele tratou de chamar o território de “Quilombo da Poesia”. O nome vem da revolução que o livro de César Monteiro fez na comunidade.

Em uma das nossas visitas, fomos guiados por César em uma caminhada pelo quilombo. Ao longo do percurso de vastas paisagens verdes, foram desabrochando várias meninas empoderadas que recitam suas histórias através dos poemas.

Anara Barbosa, de 12 anos, é uma delas e foi a primeira menina da comunidade a se interessar pelo livro. Ela conta que encontrou a obra no guarda-roupa do irmão Matheus, um presente dado pelo pai, César Monteiro.

Segundo a jovem, a capa do livro foi o que mais chamou a atenção dela, por se tratar de uma mulher negra de cabelos cacheados.

Esperta, decorou rapidamente o primeiro poema e recitou para César. Como recompensa pelo gesto, o poeta presenteou a jovem com um poema chamado “Meu Nome é Anara”.

Meu nome é Anara

Meu nome é Anara,
menina guerreira,
sou quilombola, jogo capoeira,
amo meu cabelo,
minha história e minha cor,
toda essência e raiz daquilo que sou.
Aline, Gizelle, Milene e Eduarda,
unidos na guerra a gente se arma
como quem municia o corpo e a mente,
se vocês são racistas, saia da frente.
Sou a Capoeria do passado,
em minha consciência presente.

“Eu gostei tanto que quase ia tendo um piripaque”, diz Anara sobre o presente em forma de poesia. “Acho legal porque pode tirar o meu nome e colocar o delas”, completa.

O poema é recitado por todas as meninas do Quilombo, e quem ainda não sabe, já está decorando. Laurinha, integrante do Coletivo, tem 5 anos e já recita “Meu nome é Laura”.

Laurinha aprende as poesias ouvindo as demais recitarem (Foto: Arnaldo Félix)

Depois que o livro chegou nas mãos de Anara, ela emprestou a outras crianças. “Quando eu peguei o livro de Matheus, eu dei a Gizelle, depois dela passou pra Mylena e Dé, que são irmãos. E depois de Dé pra Aline, minha prima”, relembra.

Gizelle Brito, hoje com 15 anos, lembra quando teve o contato a primeira vez com o trabalho de César. “Num domingo, ele trouxe uma menina de Garanhuns que já declamava junto com ele, ai ela tinha um cabelo bem cacheado, a pele bem preta, aquilo me encantou até hoje.”

O encatamento foi tanto que a jovem escreveu um poema para relembrar o dia das fotos de Aline Beatriz, artista que representa a Preta do Quilombo e está estampada na capa do livro.

Gizelle diz que escreve poemas sobre o quilombo, mulheres negras, empoderamento e contra o racismo (Foto: Arnaldo Félix)

Quilombo

Cheguei no Quilombo e me impressionei
com aquelas pretas perfeitas
sainhas de angola
até hoje me lembro daquela trajetória.
Elas tinham a pele tão linda,
tão perfeita, tão preta
de branco só tinha os dentes.
Ainda hoje me lembro do sorriso simples e valente.
Tentou me humilhar usando o racismo,
logo eu, mulher negra, consciente e orgulhosa,
da própria origem quilombola.

Poétnico: de mão em mão

Através de Anara e Gizelle, outras meninas tiveram acesso ao livro, a exemplo das irmãs Crislayne Brito e Laura Bianca, de 11 e 12 anos, respectivamente.

“Eu e Anara tava na escola e César chegou de surpresa, aí ele foi e mandou a gente subir no palco e disse: ‘gente eu quero que vocês declamem a poesia que vocês sabem.’ Então a gente subiu no palco e declamou. Todo mundo não gostava de mim, aí quando eu declamei, todo mundo foi e disse: ‘Cris, eu sou sua amiga, eu gostei da sua poesia e eu quero que você declame outra na sala'”, diz Crislayne.

Bianca conta que sua experiência na escola foi semelhante com a da sua irmã. Para ela, a poesia também foi uma forma de lutar contra o preconceito dentro da sala de aula.

As meninas repassaram o livro e ajudaram umas as outras a decorar os poemas sobre a comunidade (Foto: Arnaldo Félix)

“Quando ninguém gostava de mim, eu me sentia muito triste. Mas, depois que eu comecei a recitar poesia, fui tendo muitos amigos e fui gostando mais do livro”, conta Laura Bianca.

A jovem revela que seu poema preferido é “Quinhentos anos”.

Quinhentos anos de escravidão
Cinco séculos de resistência
Ao preconceito a opressão
Nossa cor não é doença.
Doença é alguém achar
Que há raça, língua ou cor
Sobre outra superior
Que a possa humilhar.
Quinhentos anos de história
Podre como a politica
Como a justiça paralitica
Numa sociedade Nóia
Nessa paranoia desumana
Podres seres racistas
De pus, fezes e lama.
Escravos da fama e da cobiça
Quinhentos anos de injustiça
De fome, estupro e pesadelo.
Gritos de dores e de conquistas
São gritos de afro-brasileiros
Nosso espirito é um sopro
Vento que não se acalma
Um dia escravos no corpo
Mas nunca escravos na alma.

Coletivo Poétnico

Depois de reunir tantas meninas pela poesia, César organizou o Coletivo Poétnico, onde elas recitam os seus poemas favoritos do livro.

“Não tem ensaio, eu só não quero que a mesma declame o mesmo. Mas aí cada uma pega um poema”, explica.

César Monteiro espera que a poesia ajude as meninas como ajudou a ele também.

“A poesia veio para consertar um buraco dentro de mim. Hoje eu falo assim: para cada mulher pela minha poesia transformada, eu vingo minha mãe assassinada.”

Segundo o educador e poeta, a poesia pode ser uma válvula de escape das meninas contra o preconceito, o racismo, o machismo e outras violências.

“Quando eu declamo, eu sinto que eu sou dos quilombolas da Curiquinha dos Negros. E eu amo essas poesias, sinto que no futuro eu vou ser uma menina poeta”, finaliza Cris.

Assim como Crislayne, Gizelle também se projeta como poetisa e pretende lançar o próprio livro de poesias. “Eu desejo que outras pessoas possam ler meus trabalhos e decorá-los também”.

A poesia transforma

Para o educador César Monteiro, os poemas e as experiências das meninas fazem com que elas se transformem de forma natural. São muitos os efeitos positivos que o livro traz para a vida das jovens.

Dignidade, reconhecimento, orgulho das suas raízes e um conhecimento, porque no livro tem os antepassados delas, tem pessoas que fizeram história na comunidade, mas que foram esquecidas, inclusive pelos próprios familiares”, fala César emocionado.

Gizelle concorda, diz que a poesia transformou sua vida. “Eu fico encantada com a mente que eu conquistei através dos poemas. Tipo, eu não me aceitava, eu tinha insegurança comigo mesma, e hoje em dia eu imagino que nada me afeta sobre essa questão do racismo”, afirma.

O trabalho que César Monteiro realiza com as meninas do Quilombo Curiquinha dos Negros vem mudando a vida de todos da comunidade, desde a matriarca, Marina Brito, até outras jovens que estão chegando no território agora.

Um exemplo disso é Ana Beatriz, de 14 anos, que conheceu o Coletivo Poétnico através de Rayane, uma das integrantes.

A jovem mora em Genipapo, uma das comunidades do Quilombo. Além de recitar, Ana também escreve.

“Meu primeiro contato com a poesia foi declamando em uma entrevista que eu fiz. Declamei ‘Quinhentos anos’. Eu já conheço César há uns anos, mas comecei a escrever vai fazer três meses”, conta.

Segundo a estudante do 9º ano, o gosto por ler e escrever vem da irmã e do tio, mas passou a se dedicar à escrita depois de passar por um processo traumático.

Seus poemas falam do povo preto, sua cultura e a luta contra as diversas violências.

A luta contra o racismo

Chega de racismo
De história mal contada
Chega de hipocrisia
De mentira esfarrapada
Esse preconceito infeliz
Que por aí diz
Que negro não vale nada.
O negro também precisa
Ser privilegiado

Chega de arrogância
Branco tenha cuidado
Com o preconceito em alta
Pois quem muito se exalta
É sempre humilhado.
Preto, branco e mulato
Vamos nos unir
O preconceito é horrível
E não é para existir
Já que todos somos irmãos
Essa grande nação
Espalhada por aí.

A consciência negra
Quer exatamente
Provar que somos iguais
E não diferentes
São lutas populares
Como as de Zumbi dos Palmares
Que morreu pela sua gente.

É preciso desde já
Com amor todo gentil
Acabar com o preconceito
E ver em nosso Brasil
O negro sorrindo tanto
Como a Daiane dos Santos,
Pelé e Gilberto Gil.

Fotos do Coletivo Poétnico, FIG 2022

Em julho, o Coletivo Poétnico se apresentou na Praça da Palavra, durante a programação do FIG 2022.

A data era perfeita! Dia 25, Dia da Mulher Negra, Latino Americana e Caribenha, e o palco ainda homenageava a escritora Carolina Maria de Jesus.

Naquela noite, também subiram ao palco outras mulheres pretas pernambucanas, como a ativista quilombola e moradora da Comunidade de Castainho, Edivane Lopes, e as escritoras recifenses Inaldete Pinheiro e Odailta Alves.

Confira como foi a apresentação:

últimos artigos

Leia também...

No more posts to show